segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Liberdade e Ritual

Comecemos bem lá trás, na defesa (que se quer certa e segura). Foi a nossa condição de humanos e o santossacro livre-arbítrio com o qual fomos equipados, que nos permitiu evoluir, de estádio em estádio, até à suprema e actual circunstância. O soltar das amarras instintivas permitiu-nos racionalizar grande parte da nossa existência e aquela pequena parte que não controlámos e/ou não alcançámos, desde sempre remetemos para o sagrado. Essa aparente liberdade, na verdade, esteve sempre condicionada pelas instituídas regras dos ritos, que a cada passo, a cada passagem, impunham determinados comportamentos físicos e cambiantes preceitos morais.
Continuemos no presente, bem no meio-campo (que se quer racional, onde se cogita e mastiga todo o conhecimento adquirido e se exercitam novos rasgos). Existem expressões de liberdade, várias formas de a exteriorizar, mas de entre todas elas a que mais se aproxima do ideal de liberdade será o jogo. E mais, o nirvana dessa liberdade será o jogo.
A vivacidade e a graça estão originalmente ligadas às formas mais primitivas e simples do jogo. É neste que a beleza do corpo humano em movimento e liberdade atinge seu apogeu. Nas suas formas mais complexas, o jogo está saturado de ritmo e de harmonia, que são os mais nobres dons da percepção estética que o homem dispõe. São muitos, e bem íntimos os laços que unem o jogo e a beleza.
No entanto, o jogo é uma função da vida, mas não é passível de definição exacta em termos lógicos, biológicos ou estéticos… eu não consigo, mas façam o favor…
Antes de mais nada, o jogo é uma actividade voluntária. Basta esta característica de liberdade para afastá-lo definitivamente do curso da evolução natural.
Quer a criança, quer o animal são levados ao jogo pela força de seu instinto e pela necessidade de desenvolverem suas faculdades selectivas, físicas e psicológicas, naquilo que se espera que seja o seu correcto desenvolvimento ontogenético.
Seja como for, para o indivíduo adulto e responsável o jogo é uma função que facilmente poderia ser dispensada, é algo supérfluo. Só se torna uma verdadeira necessidade na medida em que o prazer por ele provocado o transforma num desejo. Será possível, em qualquer momento, adiar ou suspender o jogo? Delicado (o estado do terreno terá que estar mesmo impraticável).
Jamais é imposto pela necessidade física ou pelo dever moral e nunca constituí uma tarefa, sendo sempre praticado nas horas de ócio. Obrigação e dever apenas quando constitui uma função cultural reconhecida, como no culto e no ritual e esqueçam essa história de haver profissionais do jogo – esses são os batoteiros, entretanto perseguidos pelas forças de segurança (e da moral).
Passemos ao futuro, bem lá para a frente (que se quer criativa, espontânea e assertiva). Venha o que vier, com maior ou menor tecnologia, maior ou menor espontaneidade, o jogo sobreviverá e a sua maior qualidade, desconfio, continuará a ser a liberdade de pôr a bola no chão e o ritual de ter que a jogar bem.

"Agradeço a colaboração de Johan Huizinga que, num outro tempo, foi um exímio jogador de meio-campo; agradeço também a inspiração para este ritual cristalizante que é a escrita a este grande defesa, que apesar de tudo consegue chegar criativamente bem à frente"

Luis
Antropólogo

Texto redigido ao som de "Chocolate Jesus" - Tom Waits



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